Wal Reis

O Direito de Não Amar – Por Wal Reis

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Da onde a gente tirou que alguns “tipos de amor” são decretos?

*Wal Reis

– Vou ser pai.

Dei mais uma mordida na maçã, sem tirar os olhos do livro no meu colo. “A análise de conteúdo de comunicação”, de Paul Lazarsfeld.

-Não, não vou. Tá maluco? Tenho que estudar. Prova a semana toda.

Não foi só o barulho do campus lotado na metade da manhã que fez com que a frase que eu acabara de ouvir tivesse me soado equivocadamente como “você vai” e eu ligasse a ordem à festa que rolaria mais tarde, num bar onde os universitários se reuniam depois das aulas. Ele tinha realmente dito isso muito baixo. Mas foi seu silêncio, quando eu esperava um protesto, que me fez olhar em sua direção, sentado na mureta que separava a entrada da faculdade de comunicação e o jardim. Ele também tinha um livro no colo, mas olhava fixamente para um impresso depositado em cima das páginas abertas de um exemplar desbotado de Marshall McLuhan.

– Eu vou ser pai – repetiu olhando para o nada.

Deixei a maçã cair da minha mão, enquanto tentava segurar meu queixo. Larguei o livro e, em um movimento único, saltei do banco e puxei o papel que parecia ter causado o cataclismo. Nunca tinha visto o resultado de um exame de gravidez. Demorei um pouco para entender que aquele “positivo para Beta HCG” era aquilo mesmo.

Ele tinha 19 anos.

Pensei em brigar, falar um monte de palavrões e me valer da condição de amiga mais velha. Tínhamos licença poética para isso. Perguntar por que raios não tinham usado camisinha, inquerir se ele seria mesmo o pai. Mas não disse uma palavra.

Ele estava letárgico. Muito branco. Não movia um músculo da face. Sentei do seu lado e passei meu braço pelas suas costas até alcançar o ombro. Ficamos assim, mudos.

Nos oito meses seguintes travei uma guerra para que não trancasse a matrícula. A família não exigiu que ele trabalhasse e nem a mãe da criança fazia nenhum tipo de cobrança. Mas algo nele tinha morrido com aquela notícia. Faltava no curso mais do que ia. O molecão alegre e falante havia dado lugar a um sujeito barbado e taciturno.

Não se comoveu com o primeiro ultrassom e nem com o segundo, quando descobriu que era um menino. Agradecia automaticamente os presentes que os colegas lhe entregavam “para o bebê” e os esquecia no carro.

Acordei num sábado com o telefone tocando na cabeceira da minha cama.

– Vai nascer.

Corri tanto que cheguei antes dele na maternidade. Ficamos sentados em uma espécie de sala de espera até os médicos decidirem que o tal parto natural, requerido pela mãe, não ia rolar e a cesariana era a única opção. Ele se negou veementemente a entrar no centro cirúrgico, sob os olhares de desaprovação dos futuros avós.

Quando a coisinha vermelha, rechonchuda e cabeluda foi depositada em seus braços de adolescente desajeitado percebi que o bebê tinha nascido. Mas o pai dele não. Ele ergueu os olhos marejados na minha direção e todos no recinto entenderam aquilo como emoção e choraram junto. Mas, no caso dele, era desespero.

– O que eu faço agora? – perguntou em um fio de voz, olhando o recém-nascido, notoriamente desconfortável naquele colo torto.

– Parece que você vai ter que amar – respondi sem muita convicção.

Mas estava errada.

Não é tão automático quanto parece esse amor proclamado entre pais e filhos, entre irmãos ou parentes próximos. E aquele era um caso assim. Uma transa casual, uma gestação e um filho. Sem vínculos, sem convivência, sem convicções. E uma criança. E a gente tem mesmo uma tendência de gostar de filhotes. Mas amar simplesmente porque aquele serzinho foi construído com seu material genético, como se isso ligasse uma chave mágica que colocasse o amor em modo on?

Acredito em sentimento construído com identificação e descobertas do dia a dia e isso vale para qualquer tipo de amor. Acredito também no amor que chega com o planejamento de uma família, quando mamãe e papai decidem que está na hora de serem três (quatro, cinco…). É um amor que, assim como útero, vai se preparando para receber o novo integrante da equipe. E também deve acontecer (mas a coragem de admitir talvez aconteça menos) desse filho esperado vir tão alheio às suas expectativas, tão diferente do planejado, que amá-lo vai exigir concentração.

Impor o amor é uma incongruência por si só. Ninguém deveria se sentir cobrado por não amar.

Demorou um pouco para meu amigo deixar de se sentir um monstro por não amar aquele filho. E foi mais ou menos quando isso aconteceu que ele se permitiu conviver mais com o pequeno, que cresceu e virou seu amigo. Não o melhor amigo, é verdade. Mas hoje eles se entendem, se desentendem, se perdoam, jogam videogame, discutem futebol e – vá lá- até se amam.

*Wal Reis é jornalista, profissional de comunicação corporativa e escreve sobre comportamento e coisas da vida. Blog: www.walreisemoutraspalavras.com.br

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