A cegueira, meu personagem de 2019
Literatura

A cegueira, meu personagem de 2019

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Crônica por Nilson Lattari

Procurar, durante o ano que passou, um personagem não é uma tarefa fácil. Têm-se para todos os gostos. Algumas vezes ele não é real, é uma interpretação sobre os acontecimentos. No caso, os meus escolhidos fizeram parte de uma imagem que me impressionou, e são reais, e que valem uma interpretação. Em um jogo do Palmeiras, no Brasil, uma mãe leva o seu filho, cego, para assistir ao jogo. Ele não consegue ver, é claro, e a mãe narra a partida, os lances, isso no meio da torcida. Imagino que o menino, não só pelas palavras da mãe, mas pela vibração dos torcedores em volta, sentiu o clima.

A FIFA, inclusive, fez uma homenagem aos dois.

Achei, como direi, uma espécie de alento nos dias difíceis e históricos que estamos vivendo. Difíceis porque estamos lidando com uma relação interpessoal bem complicada e, politicamente, acontece o mesmo. Espero que, no futuro, a sociedade rejeite as divisões baseadas no ódio, e não queira que elas voltem, assim como não queremos conviver mais com uma realidade hiperinflacionária, de três dígitos anuais.

Uma recente pesquisa do Datafolha diz que a influência dos discursos de ódio ou de cegueira sobre os usuários do Whatsapp estão menores: Uma luz na escuridão? O que nos leva a concluir que uma parte dos usuários, acostumada a compartilhar e a desenvolver textos sem nenhuma fidedignidade e adepta de um discurso estúpido, mesmo tendo diante de si discursos baseados em fatos concretos e análises próximas da realidade, ainda os rejeita, e procura as notícias que estão mais afetas à sua necessidade brutal e desconectada com a realidade.

Estabelecendo um paralelo entre a situação daquela mãe que guia o filho cego, integrando-o ao mundo, e daqueles que preferem se manter em um mundo onde a cegueira é uma satisfação e uma zona de conforto, podemos concluir que o resultado é óbvio: cegueiras são muitas.

Essa forma de cegueira pode sentir a vibração em volta, ser orientada sobre a realidade que está acontecendo, e continuar assim por ser mais reconfortante do que encarar a vida. O mito da caverna se encaixa, perfeitamente, nesse caso. E nele, também a cegueira ou a resistência em encarar a realidade são iguais. E mais ainda, nas palavras de Raul Seixas, “ter aquela velha opinião formada sobre tudo”.

Tirar suas próprias conclusões sobre tudo e demonstrar ter opinião formada sobre tudo são uma forma de estar cego. Não querer a informação real, não ter senso crítico, principalmente sobre si mesmo, aquela covardia em admitir o erro, não se reinventar são formas de cegueira.

Vendo aquela mãe narrando o jogo para seu filho, um apaixonado por futebol, e ela mais ainda sobre seu pequeno torcedor, isso tem muito a nos dizer. Quando recebemos o sinal de alerta sobre a notícia falsa dita por um amigo ou lida com todas as letras, negá-la ou reproduzi-la, simplesmente porque ela é tudo aquilo que pensamos e queremos que seja realidade, é não ouvir a voz do narrador interno que temos e pular de alegria, mesmo sabendo que é um gol contra ou do adversário.

Ao final, a derrota é inevitável.

Posso dizer que se uma situação qualquer se estabelece, alguém está ganhando com ela. Qual o sentido em espalhar a cegueira, nessa forma de viver onde a mentira ganhou o pomposo nome de pós-verdade? Até a mentira perdeu seu lugar.

Terra plana, nazismo de esquerda, louvar a Jesus com gestos de arma em punho e outras maluquices nos leva a pensar que alguns, realmente, estão mais perdidos do que cego em tiroteio. E aqueles que tentam manter a mente em ordem são as vítimas das balas perdidas, lançadas a esmo por cegos e oportunistas.

Parabéns para aquela mãe que guia seu filho nessas artimanhas emocionantes da arte de viver. A nossa? É a mão na consciência e muita vontade de ler, estudar e aprender. Lugar comum: pior cego é aquele que não quer ver, mesmo em tempos de telas iluminadas. E a preguiça intelectual é uma forma bem peculiar de cegueira.

Se você não conhece, envio o poema de Victor Hugo

Poema

Desejo primeiro que você ame,
E que amando, também seja amado.
E que se não for, seja breve em esquecer.
E que esquecendo, não guarde mágoa.
Desejo, pois, que não seja assim,
Mas se for, saiba ser sem desesperar.

Desejo também que tenha amigos,
Que mesmo maus e inconseqüentes,
Sejam corajosos e fiéis,
E que pelo menos num deles
Você possa confiar sem duvidar.
E porque a vida é assim,
Desejo ainda que você tenha inimigos.
Nem muitos, nem poucos,
Mas na medida exata para que, algumas vezes,
Você se interpele a respeito
De suas próprias certezas.
E que entre eles, haja pelo menos um que seja justo,
Para que você não se sinta demasiado seguro.

Desejo depois que você seja útil,
Mas não insubstituível.
E que nos maus momentos,
Quando não restar mais nada,
Essa utilidade seja suficiente para manter você de pé.

Desejo ainda que você seja tolerante,
Não com os que erram pouco, porque isso é fácil,
Mas com os que erram muito e irremediavelmente,
E que fazendo bom uso dessa tolerância,
Você sirva de exemplo aos outros.

Desejo que você, sendo jovem,
Não amadureça depressa demais,
E que sendo maduro, não insista em rejuvenescer
E que sendo velho, não se dedique ao desespero.
Porque cada idade tem o seu prazer e a sua dor e
É preciso deixar que eles escorram por entre nós.

Desejo por sinal que você seja triste,
Não o ano todo, mas apenas um dia.
Mas que nesse dia descubra
Que o riso diário é bom,
O riso habitual é insosso e o riso constante é insano.

Desejo que você descubra ,
Com o máximo de urgência,
Acima e a respeito de tudo, que existem oprimidos,
Injustiçados e infelizes, e que estão à sua volta.

Desejo ainda que você afague um gato,
Alimente um cuco e ouça o joão-de-barro
Erguer triunfante o seu canto matinal
Porque, assim, você se sentirá bem por nada.

Desejo também que você plante uma semente,
Por mais minúscula que seja,
E acompanhe o seu crescimento,
Para que você saiba de quantas
Muitas vidas é feita uma árvore.

Desejo, outrossim, que você tenha dinheiro,
Porque é preciso ser prático.
E que pelo menos uma vez por ano
Coloque um pouco dele
Na sua frente e diga “Isso é meu”,
Só para que fique bem claro quem é o dono de quem.

Desejo também que nenhum de seus afetos morra,
Por ele e por você,
Mas que se morrer, você possa chorar
Sem se lamentar e sofrer sem se culpar.

Desejo por fim que você sendo homem,
Tenha uma boa mulher,
E que sendo mulher,
Tenha um bom homem
E que se amem hoje, amanhã e nos dias seguintes,
E quando estiverem exaustos e sorridentes,
Ainda haja amor para recomeçar.
E se tudo isso acontecer,
Não tenho mais nada a te desejar “.

 

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