Ladeiras íngremes das ruas em Ouro Preto com casas em estilo colonial
Brasil

Viajar por Minas é conhecer a história do Brasil em estradas eternizadas em canções

José Roberto Luchetti é jornalista, escritor e sócio da DOC Press. Trabalhou nas emissoras Globo, Band e Rede Mulher, além da rádio Eldorado (atual rádio Estadão).
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Dirigir pelas estradas de Minas Gerais, pelas cidades históricas é visitar o passado do Brasil. São João del Rei, Tiradentes, Mariana, Ouro Preto e Congonhas, entre outras, são locais que ainda ostentam a atmosfera de um país colonial, que foi escravocrata, monárquico, mas com ideias libertárias. Registros em construções do século XVIIII, como a igreja de São Francisco de Assis, em São João de Rei, com canto barroco de 40 músicos e coralistas aos domingos; ou a Matriz de Nossa Senhora do Pilar em Ouro Preto com 400 quilos de ouro em suas paredes; ou ainda a Matriz de Santo Antônio, em Tiradentes, com vista privilegiada de toda a cidade e que à noite tem a sua história contada na voz do falecido ator, Paulo Goulart; ou as duas igrejas da Praça Minas Gerais, em Mariana, que ainda tem um pelourinho para manter viva as atrocidades praticadas durante esse período; ou o Santuário de Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, com os 12 profetas esculpidos por Aleijadinho em pedra sabão.

Todas essas cidades são ligadas por uma via vicinal, a Estrada Real, que serpenteia montanhas, ao som de trilhas musicais emblemáticas de canções mineiras, que “falam do relevo, das estradas e, acima de tudo, de vida e o amor.

“Solto a voz nas estradas, já não quero parar, meu caminho é de pedra, como posso sonhar?”, como na eternizada Travessia de Milton Nascimento e Fernando Brandt.

Igreja de São Francisco de Assis em São João del Rei

Do mesmo Milton e Ronaldo Bastos que já estavam “com o pé nessa estrada, qualquer dia a gente se vê…” em Nada será como antes.

Todos esses compositores ainda muito jovens fazendo poesia musicada em um Clube da Esquina, batizado numa canção com o número 2, por Milton e Lo Borges. “Porque se chamava moço, também se chamava estrada, viagem de ventania”.

Já Em Fé Cega, Faca Amolada, Milton e Ronaldo Bastos lembram que “agora não perguntam mais aonde vai a estrada…”

Estrada asfaltada, de terra ou ferro como em Ponta de areia de Milton e Brandt que era o “ponto final da Bahia-Minas, estrada natural que ligava Minas ao porto, ao mar”.

Em Amor de Índio, Lo Borges e Ronaldo Bastos contam que “tudo que move é sagrado e remove as montanhas com todo cuidado”.

Montanhas desta imensidão que na voz de Milton é “o mundo lá sempre a rodar… estrada de fazer o sonho acontecer” em Quem sabe isso quer dizer amor.

O profeta Daniel, um dos 12 esculpidos por Aleijadinho em Congonhas.

Amor por tantos lugares “da janela lateral do quarto de dormir” onde a dupla Brandt e Lo Borges via o que qualquer viajante vê por essas bandas… “Uma igreja, um sinal de glória. Vejo um muro branco e um voo pássaro. Vejo uma grade, um velho sinal”.

E ainda Milton e Brandt, em Nos bailes da vida eternizaram que “cantar era buscar o caminho que vai dar no sol. Para cantar nada era longe tudo tão bom. Até a estrada de terra na boleia de caminhão. Era assim”.

E era assim que na voz de Milton “vou me encontrar longe do meu lugar, eu, caçador de mim”.

“Talvez a vida mude e nossa estrada pode se cruzar. Amor, meu grande amor, estou sentindo que está chegando a hora de dormir”, em Outro Lugar cantada por Milton e destino de todo viajante num final de dia cansado, mas com memórias ainda frescas na cabeça de tantos lugares visitados.

E de Brandt e Lo Borges Pra Lennon e McCartney: “sou do mundo, sou Minas Gerais”. Somos todos Minas Gerais, não há como percorrer esses caminhos e voltar para casa do mesmo jeito. A paisagem e canções que imortalizaram esse pedaço do Brasil se associam com uma culinária regional sem igual, as inúmeras cachaças produzidas artesanalmente há décadas e mais recentemente as cervejas locais também artesanais.

Casario em Tiradentes e ao fundo a igreja de Santo Antônio.

Da culinária, podemos destacar o Feijão Tropeiro, feito com linguiça, farinha de mandioca e outros ingredientes, geralmente acompanhado de torresmo e ovo frito; o Tutu de Feijão, cozido e temperado, batido no liquidificador com farinha de mandioca e refogado com alho, cebola e outros ingredientes, servido com arroz, couve e linguiça; o Frango com Quiabo, em um molho saboroso, geralmente acompanhado de angu, uma espécie de polenta, feito com leite e temperado com queijo ralado; o Pão de Queijo, preparado com polvilho, queijo e manteiga, considerado um ícone da culinária mineira e, atualmente, encontrado em todo o Brasil; o Leitão à Pururuca, com porco assado até ficar crocante por fora e macio por dentro; o Frango ao Molho Pardo, que é cozido em um molho feito com sangue de galinha, alho e temperos; Canjiquinha com Costelinha, que é um tipo de milho quebrado (quirera) e a costela de porco, temperada com alho, cebola e outros ingredientes, além de inúmeros doces, compotas de frutas e a ambrosia, elaborada com leite, açúcar, ovos e especiarias, cozida lentamente até se tornar cremosa. 

 O médico cardiologista mineiro, Marcus Vinicius Bolivar Malachias, que foi presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia e governador do Capítulo Brasil do American College of Cardiology, e por décadas promove ações ligadas à alimentação saudável, conta que sua iguaria preferida da culinária local é o Pão de Queijo. “Um verdadeiro símbolo de Minas; um saboroso e autêntico cartão postal da terra, assim como a arte de Carlos Drumond de Andrade, Guimarães Rosa e do Clube da Esquina. Apesar de ser algo calórico, tudo na vida é equilíbrio. E combina muito bem com o ótimo e saudável café 100% arábica produzido no sul e no triângulo mineiros, apreciado em todo o mundo”, complementa Malachias.

Causos de Ouro Preto

Dona Kau tem algumas décadas vividas, todas elas em Ouro Preto. Ela é dona de um casarão sobrado com três quartos para hóspedes, “forasteiros”, como o repórter da Acontece, que utilizam aplicativos como o Booking ou o Airbnb para reservas. Ela conta histórias da cidade e de Chico Rei, um escravo que era príncipe no Congo e foi capturado por portugueses. Na viagem ao Brasil, sua esposa, Djalô, e a filha, princesa Itulo, foram lançadas ao mar. Chico, que originalmente se chamava Galanga Muzinga, chegou sozinho ao Rio de Janeiro, em 1740, no navio Santa Madalena, e depois foi para Vila Rica (atual Ouro Preto) para trabalhar na Mina da Encardideira. Diziam que escondia ouro em pó nos cabelos, debaixo das unhas e pepitas entre os dentes e foi assim que juntou recursos para comprar a sua alforria e de outros escravos. Com o passar do tempo, de olho nas dívidas do patrão, adquiriu a Mina, rebatizada de Mina Chico Rei.

O sacrifico dos negros teria feito com que o local fosse um reduto de espíritos em sofrimento, afinal muitos morriam dentro da própria Mina e eram deixados lá. A mãe de Kau, Dona Mariazinha da Mina Chico Rei, que era médium, foi responsável por “salvar essas almas”, segundo a filha: “depois de muitas orações, subiram ao céu”. Dona Mariazinha orava também em Yoruba, dialeto do Congo e “conduziu o resgate da história de Chico Rei por muitas décadas até falecer aos 97 anos”, lembra Kau.

Atualmente a Mina é administrada, desde 2013, por Toninho, irmão de Kau. Ele conta que sucedeu a mãe, guardiã do local desde 1946. “Meus pais compraram a casa em ruínas e foram reformando. Um dia, meu irmão, Giovanni, jogando bola no quintal, descobriu a entrada da Mina”. Toninho conta diversas histórias e provérbios que surgiram na região, como o “vai pro quinto dos infernos”. Ele lembra que de todo o ouro extraído, 20% tinham que ser pagos para a Coroa portuguesa. Era o “quinto”. Outra expressão é “está de bucho cheio”. Na Mina havia buracos onde os escravos depositavam o ouro extraído, denominados de bucho. Quem enchia os buchos era premiado com comida.

“A Mina da Encardideira foi a que mais mandou ouro para Portugal cerca de 25 toneladas pelos registros oficiais, mas a estimativa é que tenha sido extraído quatro ou cinco vezes mais que isso em minerações clandestinas para sonegar os impostos reais”, lembra o administrador.

Dona Kau, que acompanhou a reportagem da Acontece pelas ruas de Ouro Preto relembra outras histórias, como as de Dirceu, codinome do inconfidente Tomás Antônio Gonzaga, que atravessava três pontes, do Rosário, dos Contos e a de Marília fazendo longas serenatas por Vila Rica para Maria Doroteia, a amada “Marilia”. Kau destaca também passagens do famoso bandido Vira Saia, que roubava o ouro da Coroa portuguesa e distribuía aos pobres. “Metade apenas, porque os outros 50% ficavam com ele”, diz com um sorriso de canto de boca ressaltando a malandragem do criminoso. Ela, advogada criminalista aposentada, é uma mulher mística que fala ainda sobre o Vale do Amanhecer, local de equilíbrio energético entre Mariana e Ouro Preto. Ambas as cidades têm dezenas de igrejas e atrativos turísticos, todos amplamente divulgados em guias e em vários idiomas, mas os causos de Kau e Toninho são memórias vivas de uma cidade que teve 400 mil habitantes no auge da extração de ouro, no mesmo período em que a população de Nova York era de cerca de 60 mil pessoas, apenas como comparação para entendermos a pujança e os tempos de glória de Ouro Preto.

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