O que desejo
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Crônica por Nilson Lattari

Não seja temperamental, detesto esses chiliques fora de hora, coisa de rompantes desnecessários. Não pague minhas contas, rachar as despesas, como se o dinheiro, a posição, o cargo fossem definidores de limites entre dois seres; até porque brincar de limites ainda é muito cedo, eles se cercam de responsabilidades, de rotinas, vêm recheados de dia a dia, lembram um quartel, com continências e roupas lavadas, passadas, perfeitas.

Talvez eu queira ser o homem da casa, mesmo que o seu salário e o seu cargo sejam maiores; pura fantasia, ninguém desconhece a verdade.

Não me perturbe quando estiver sozinho, pensando, não me pergunte o que eu penso: tenho direito a meus segredos, reviver lembranças, de relembrar descaminhos, de alterar o passado, como todo mundo faz. Faça também, em respeito a você mesma.

Talvez eu esteja sentindo a sua falta e tenha vergonha de dizer que gostaria de fazer mil coisas com você, enquanto você esmerilha a unha, pinta com cores que não me fazem sentido, e eu não esteja com vontade de saber o que a sua mãe, nosso filho, seu irmão fizeram com você no dia anterior.

Não me traga um chá toda vez que estiver doente, nem faça brincadeiras para me alegrar, não gosto disso. Não quero me sentir criança de novo, gosto de palavras de incentivo, mas não de voz alta, chamar a atenção, lições de moral, exemplos de outros que você conheceu. Não quero mais minha mãe, ela me esgotou com seu estilo de vida e eu a respeitei por isso, mas dois respeitos não cabem na mesma panela.

Talvez eu quisesse que você me abraçasse e ficasse calada sendo apenas uma mulher.

E, por falar em panela, ignore que eu esqueci de colocar sal na comida, que o bife ficou tempo demais na frigideira, que o tomate no tempero está muito grande, ou então estão cortados de vários formatos. Acredite quando eu digo que vi aquilo em algum programa de televisão, ou na internet. Que era um Chef, mas não precisa dizer que era, no mínimo, um maluco com panelas nas mãos, a bater com a frigideira molhada na cabeça enquanto tentava lembrar a receita.

Talvez eu tenha tentado uma vez, ter feito a coisa certa, meio de surpresa, sem nada a combinar.

Me deixe sem seguir receitas, lembrar a cada instante, a cada segundo, marcado no calendário que a roupa tem de ser retirada da lavandeira às quintas, que o futebol deveria ser às segundas-feiras e não aos domingos, dia de descanso. Me deixe seguir aquela bola mágica rolando no gramado verde, não pergunte por que o juiz marcou aquilo e não aquela outra coisa, não tente entender, apenas assista; mesmo que seja a roupa ridícula daquela fulana que não tem o que fazer, que fica com as pernas de fora, em pé em uma cadeira a chorar pelo gol perdido, perdida nos olhares masculinos em volta.

Talvez você nunca vá descobrir que eu gostaria de estar lá, dando um beijo em você, só para aparecer na TV.

Entenda o que é companheirismo, não os membros de uma passeata meio sem sentido, uma juntada de colegas a festejar uma data qualquer, um grupo de pessoas para assistir uma peça, uma sessão de cinema.

Talvez você nunca tenha percebido que companheirismo é aquele que acompanha o outro, colocando coisas na casa que eu nunca colocaria, um quadro, um tapete novo, podendo ser caro e longe de aparecer no cartão de crédito, tenha um escondido, com pagamento no banco, sem avisos de cobrança.

Talvez você nunca tenha percebido que companheirismo é acompanhar um sonho idiota, comemorar uma promoção, torcer por ela, e não fabricar obstáculos, como se os seus braços fossem suficientemente longos para amparar a minha queda.

Acompanhe simplesmente.

Não me obrigue a dançar, caso não queira, e acuse uma dor no pé quando alguém quiser tirar você. Se você me acompanha, qual motivo encontrarei para não acompanhar você, se depois de tudo a gente vai poder dormir abraçados como duas crianças?

Foto: Stéphan Valentin on Unsplash

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