User Review
( votes)Solicitações se dão por conta conta das mudanças na política migratória dos EUA
➔ Por: José Roberto Luchetti
Em entrevista exclusiva, o embaixador que comanda a representação diplomática fala também sobre negócios, o comércio bilateral Brasil/Flórida, a crescente comunidade brasileira local — que deve ultrapassar a de Miami — e o aumento da demanda por serviços consulares.
João Lucas Quental Novaes de Almeida é diplomata de carreira, com mais de 30 anos de atuação no Ministério das Relações Exteriores do Brasil, e atualmente exerce o cargo de Cônsul-Geral do Brasil em Orlando. Ele foi o primeiro a assumir a chefia do Consulado-Geral na cidade, liderando a transformação da antiga agência consular em um dos quatro principais consulados brasileiros nos EUA, em resposta ao rápido crescimento da comunidade brasileira na região.
Mestre em Relações Internacionais pela PUC-RJ e em Economia pela London School of Economics, já ocupou outros postos relevantes na diplomacia brasileira, como conselheiro na Missão do Brasil junto à ONU em Nova York. João Lucas Quental também liderou iniciativas de aproximação entre o Brasil e instituições acadêmicas e empresariais nos EUA. É responsável por modernizar e ampliar o atendimento consular em Orlando, mesmo com uma equipe bastante enxuta, composta por 14 colaboradores, implementando práticas de eficiência e promovendo serviços itinerantes para atender brasileiros em cidades vizinhas, como Tampa e Jacksonville. Tem se destacado pela atuação próxima à comunidade, promovendo eventos culturais, ciclos de palestras e projetos voltados à integração dos brasileiros na Flórida Central.
João Lucas Quental recebeu a reportagem da Acontece na sede do Consulado, na 355 N Orange Avenue, em Downtown, para falar sobre o atendimento aos brasileiros, as relações bilaterais entre Brasil e EUA e também sobre temas delicados, como as prisões de imigrantes ilegais e a volta da obrigatoriedade de visto para os americanos que querem visitar o Brasil.
Acontece: Os EUA são o segundo maior parceiro comercial do Brasil. Em 2024, foi celebrado o bicentenário das relações diplomáticas entre os dois países que são considerados grandes parceiros, com laços históricos e culturais profundos, além de interesses compartilhados em temas globais e regionais. Quais têm sido as principais pautas das relações bilaterais no último ano, e como o consulado tem participado de iniciativas para fortalecer esses laços?
João Lucas Quental: Além de ser o segundo maior destino das exportações brasileiras, os EUA são a principal origem dos investimentos externos no país. Do outro lado, as relações também são muito densas. A Flórida é o terceiro maior mercado do Brasil nos EUA e o maior destino dos investimentos brasileiros no país. Temos observado um incremento dessa relação econômica bilateral ao longo dos anos, complementada pelo turismo, que, para a Flórida, é fundamental. As relações bilaterais, sobretudo no que diz respeito a Brasil e Flórida — mais especificamente à Flórida Central e Norte — são muito orientadas por essa forte relação comercial, econômica, turística e pelos laços pessoais que unem o Brasil à Flórida. Ao longo desses 200 anos, houve altos e baixos, mas podemos afirmar com tranquilidade que se trata de uma relação madura, em que ambos se entendem mutuamente e há uma série de temas convergentes. Recentemente, com a política tarifária e migratória do governo americano, surgiram ruídos, mas, ao mesmo tempo, há conversas de alto nível entre os governos brasileiro e americano para superar essa situação. Os fundamentos são sólidos, e acredito que, tanto no que diz respeito à Flórida quanto aos EUA de modo geral, as perspectivas são muito positivas.
Acontece: Qual é a atual abrangência do Consulado em Orlando?
João Lucas Quental: Quando foi criado o Vice-Consulado, tínhamos apenas o Condado de Orange como área de atuação. Depois, foi ampliado para os sete condados aqui da região central e hoje abrange 50 dos 67 condados da Flórida, de Tampa até Tallahassee, passando por Pensacola, Gainesville e Jacksonville. É algo como metade da população total da Flórida e próximo da metade da população brasileira residente. É possível que, no sul da Flórida, a população brasileira ainda seja um pouco maior, mas o crescimento aqui é mais intenso, e, entre dois e cinco anos, esta região deve ultrapassar o sul da Flórida como o principal locus de brasileiros no estado.
Acontece: Existe alguma demanda especial da comunidade brasileira?
João Lucas Quental: A comunidade brasileira aqui tem um perfil empreendedor. São muitos pequenos e médios empresários que investem, abrem suas empresas, expandem seus negócios e procuram no consulado um ponto de apoio e referência. Quando o empresário ainda está no Brasil, pode recorrer a órgãos como Sebrae, BNDES e Apex para apoiar esse processo de internacionalização. Se ele já está aqui, podemos facilitar — e temos feito isso — contatos com órgãos de fomento dos governos locais, estadual e federal. Muitos brasileiros que já estão ou pensam em investir na Flórida não têm conhecimento das ferramentas oferecidas pelos órgãos oficiais da região. Indicamos esse caminho de facilitação entre o empresário e essas instituições governamentais.
Acontece: E a receptividade dos órgãos locais tem sido boa?
João Lucas Quental: Excelente. Eles têm plena consciência da importância da relação com o Brasil. Na região, nosso país é o principal parceiro econômico e eles querem se aproximar e sabem que o brasileiro que vem para cá investe, gera empregos, paga impostos e contribui para o crescimento local e estadual. Eles são muito abertos a cooperar com o consulado, e temos conseguido aproximar bastante as autoridades locais dos empresários brasileiros.
Acontece: O empreendedor brasileiro chega preparado para abrir um negócio por aqui?
João Lucas Quental: O brasileiro que vem para cá frequentemente se surpreende com o tempo e a dificuldade de abrir um negócio e colocá-lo em funcionamento, sobretudo se estiver na área de atendimento ao público. Há uma série de autorizações que precisam ser obtidas junto ao governo local, ao condado, e que nem sempre o brasileiro conhece. Já soube de negócios que não prosperaram porque não levaram em conta que o tempo de espera por chegar a um ano ou mais desde a conclusão da reforma da sede até poder abrir aquele restaurante, loja, ou outro empreendimento. Eu recomendo muito: faça sua pesquisa, busque uma assessoria — que pode ser pública ou privada —, mas é fundamental conhecer a região e a área de atuação antes de investir.
Acontece: Qual é a estimativa de brasileiros que vivem na Flórida atualmente?
João Lucas Quental: Não temos dados precisos. Os dados que dispomos são do censo americano de 2020 e, na nossa opinião, estão subestimados. Eles apontam entre 180 e 200 mil brasileiros na Flórida. Já documentos do Estado indicam 300 mil brasileiros e 150 mil floridianos nascidos aqui que falam português em casa, o que daria um total de 450 mil. Uma estimativa do Itamaraty, elaborada com base, por exemplo, no número de serviços consulares prestados e na lista eleitoral, indica entre 500 e 600 mil brasileiros. Algo em torno de 200 mil na Flórida Central e Norte e 300 mil no sul da Flórida. O estado americano com a maior população de brasileiros é a Flórida, que recentemente ultrapassou Massachusetts. Aqui temos a maior comunidade internacional. A população latina na Flórida já ultrapassa os 6 milhões.
Acontece: As demandas por serviços consulares são grandes?
João Lucas Quental: Em pouco tempo, nós nos tornamos um dos principais consulados da nossa rede. Em termos de movimento e de serviços, já superamos consulados tradicionais como Atlanta, Houston, São Francisco e Los Angeles. Estamos provavelmente na quarta posição consolidada em volume efetivo de atendimento, atrás apenas de Boston, Nova York e Miami. Em alguns meses, chegamos até a superar Miami. Porém, em número de funcionários, ainda somos o menor: temos 18 colaboradores no papel, mas apenas 14 na prática. Quando abrimos, em 2023, prestávamos cerca de 650 serviços por mês (passaportes, procurações, testamentos etc.). No ano seguinte, houve um aumento de 100%, passando a 1.300 serviços mensais. E agora, em 2025, já chegamos a 2.000 serviços por mês.
Acontece: Vocês oferecem serviços de assistência aos brasileiros em situação de vulnerabilidade?
João Lucas Quental: Quando fomos elevados à categoria de Consulado-Geral, passamos a oferecer assistência a brasileiros nesse quesito, por exemplo, quem perde o emprego ou enfrenta uma doença crônica e não consegue se manter normalmente sem apoio. A pessoa pode recorrer ao consulado e facilitamos contatos com nossos parceiros da sociedade civil e do governo local para viabilizar moradia ou abrigos temporários. Se a pessoa estiver passando por dificuldades de alimentação, podemos providenciar ou intermediar o acesso a uma cesta básica, roupas e, em última instância, se o brasileiro quiser retornar ao Brasil e não tiver condições, podemos auxiliar na repatriação, acionando a Defensoria Pública da União, que, comprovando a situação, pode financiar o retorno definitivo.
Acontece: Vocês têm registrado prisões arbitrárias de brasileiros em situação ilegal?
João Lucas Quental: No ano passado, atendíamos de 2 a 3 casos por semana de assistência. Em 2025, já são quase 5 casos por dia. A mudança ocorreu justamente em razão da política migratória do governo. Muitos dos novos casos envolvem pessoas detidas por questões migratórias. Não temos todos os detalhes de cada detenção, então não é possível afirmar se são arbitrárias ou não. O que fazemos é prestar o apoio consular, colocar a pessoa em contato com a família e oferecer orientações ou encaminhamento jurídico, caso necessário. Somos legalmente impedidos de representar a pessoa perante as autoridades locais, mas podemos assessorá-la. Aqui na nossa região não há um grande centro de detenção de imigrantes em situação irregular. Geralmente, quem é detido vai primeiro para o centro de detenção do condado ou a prisão municipal e depois é transferido para algum outro centro, seja no Texas, na Louisiana ou no sul da Flórida.
Acontece: Pessoalmente, o embaixador se movimenta bastante junto às autoridades locais para fomentar as relações bilaterais entre o Brasil e a Flórida. Como é definida a sua agenda com tantas demandas?
João Lucas Quental: Esse é o diferencial de ter um consulado presente na região. Quando Miami cobria todo o estado, acabava se concentrando no sul da Flórida. Viam para cá apenas com consulados itinerantes e não tinham nem pessoal, nem estrutura para conviver e conhecer as autoridades locais. Com a nossa presença, temos feito esse trabalho de conhecer pessoalmente, sempre que possível, prefeitos, comissários, deputados e senadores estaduais e federais. Eles têm sido muito receptivos ao Brasil. Independentemente do partido, seja republicano ou democrata, todos reconhecem o peso da comunidade brasileira na região e a sua contribuição, e nos veem como parceiros, o que é muito importante.
Acontece: Desde abril deste ano, o Brasil voltou a exigir visto para os americanos. Isso aumentou as demandas do consulado?
João Lucas Quental: Os interessados não precisam vir pessoalmente ao consulado. O processo é totalmente online, mas a validação final é feita pelos consulados. Todo o processo de solicitação, preenchimento do formulário e envio dos documentos ocorre por meio de uma empresa terceirizada especializada em processamento de vistos. Eles fazem uma primeira triagem e enviam os processos aos consulados de forma aleatória. Nem sempre recebemos aqui o pedido de residentes de Orlando ou da Flórida Central; podemos receber pedidos de pessoas do estado de Washington, da Califórnia, de qualquer parte do país. As finalizações são distribuídas de acordo com a capacidade de cada consulado. Atualmente, estamos processando em torno de 800 vistos por mês. Começamos com cerca de 80 e já crescemos dez vezes.
Acontece: O senhor acredita que a exigência de visto pode diminuir o número de americanos que viajam ao Brasil?
João Lucas Quental: Eu acredito que não, porque o Brasil não é um destino para o qual as pessoas decidem viajar de última hora, dizendo “vamos amanhã”. É longe, não é um destino tradicional do americano como o Caribe, o México ou o Canadá. É necessário certo investimento e planejamento. Além disso, o processo de visto é muito simples, rápido e barato: custa 80 dólares e fica pronto em, no máximo, duas semanas.
Acontece: O senhor considera adequada essa medida do governo brasileiro?
João Lucas Quental: Essa é uma das regras básicas da diplomacia e um dos principais instrumentos de negociação quando se trata de vistos. Ao exigir o visto, podemos negociar com aquele país a dispensa recíproca. Curiosamente, foi assim que ocorreu com o Japão: era um dos países para os quais o Brasil tinha suspendido a exigência de visto e, quando voltou a pedir, as duas nações negociaram e agora não há mais necessidade de nenhum dos lados. É importante, para futuras negociações, chegar à situação que todos desejamos, que é a dispensa de visto para Austrália, Canadá e Estados Unidos.
Acontece: Qual o papel do consulado junto à comunidade?
João Lucas Quental: O consulado é a casa do brasileiro na Flórida Central. Estamos ao lado da comunidade, defendendo seus interesses e demandas junto aos governos locais e estadual. O brasileiro pode sempre recorrer ao consulado, que é sua referência. Nestes últimos meses, temos visto um aumento muito grande na demanda por serviços consulares. Em parte, a comunidade brasileira está apreensiva com a situação migratória no país e tem buscado renovar seus documentos, o que acaba gerando um tempo maior de espera. Eu gostaria, primeiro, de pedir minhas desculpas à comunidade brasileira e lamentar o incômodo que isso tem causado. Estamos cientes da situação e trabalhando com todo nosso pessoal para superar essa sobrecarga de demanda. Esperamos que agora, no segundo semestre, tudo volte a um patamar mais aceitável. Minha recomendação é que, antes de comprar passagem, o brasileiro verifique a validade do passaporte. Planeje com antecedência, pois alguns documentos podem levar até três meses para serem emitidos. Nossa meta é voltar ao prazo padrão de 30 dias e imaginamos que conseguiremos isso na virada do ano.
Ao final da entrevista, o jornalista José Roberto Luchetti entregou dois exemplares dos livros Alberto do Sonho ao Voo, sobre a infância do aviador Santos-Dumont, e Poesia de um Sapateiro, lançado neste ano pela editora Ipê das Letras no Brasil e em Portugal. Ambas as publicações foram escritas por Luchetti e agora passam a integrar a biblioteca do consulado. O embaixador agradeceu e informou que há uma área destinada às crianças no local onde disponibilizou o livro paradidático sobre Santos-Dumont.




Comente