User Review
( vote)por José Luchetti
Um sonho interrompido por mais de três décadas. A jovem Fernanda Mascaro com apenas 18 anos se apresentava no programa “Novos Talentos”, apresentado por Murilo Néri, da recém emissora que surgia, o SBT, após o fim da lendária TV Tupi. Fernanda, logo na estreia, desbancou outra cantora que estava no ar havia semanas. A cada programa dois jovens cantores se apresentavam; no final, um voltava para casa e o outro seguia. Fernanda Mascaro passou a cantar por episódios seguidos de “Novos Talentos” até que uma opositora foi escolhida pelos jurados para substitui-la. Era a vez de Fernanda voltar para casa. Nos dias seguintes, ligações e cartas choveram no SBT pedindo o retorno de Fernanda Mascaro e a produção ligou para ela. “Eles queriam que eu voltasse, mas eu não aceitei”, conta deixando transparecer a integridade de sua personalidade, já aos 18 anos.
Passadas duas semanas, um contato comum possibilitou um encontro com o apresentador Flávio Cavalcanti, um dos mais polêmicos comunicadores da história da televisão brasileira, estrela do mesmo SBT. Fernanda Mascaro foi almoçar na casa do apresentador, onde também estavam Alcione e Helô Pinheiro, a eterna Garota de Ipanema. “Combinamos uma participação futura no programa. Voltei para casa no final do dia e comecei a pensar em canções para a tal estreia”.
Era maio de 1986, numa noite, Fernanda Mascaro pediu uma pizza e pegou uma garrafa de Coca-Cola, até hoje não toma uma gota de álcool. Sentou-se na frente da televisão para ver o programa de Flávio Cavalcanti. “Eu queria pegar os detalhes, precisava me preparar”, mas ainda no primeiro bloco, Flávio levantou o dedo indicador, como habitual e disse: “nossos comerciais, por favor”. Após o intervalo, surpreendentemente o jurado Wagner Montes era quem estava no famoso púlpito. Ele explicou que Flávio não passou bem e que voltaria no próximo programa. Flávio Cavalcanti, nunca mais retornou, teve um infarto naquela noite e morreu quatro dias depois.
Percebi que aquilo não era para mim e decidi fazer psicologia e me dedicar à fotografia, que tanto amava também”, conta Fernanda que seguiu expondo fotos e atendendo em consultório particular nos últimos 30 anos.
Mas a paixão pela música, nunca parou. Nos últimos tempos, Fernanda fazia apresentações para amigos e cantava como hobby. Em março de 2020, a Organização Mundial da Saúde decretou uma pandemia de um vírus desconhecido, vindo da China, e que ninguém sabia quais seriam as dimensões da crise sanitária. Fernanda decidiu dedicar-se ao antigo sonho e se enfiou num estúdio de música no centro de São Paulo. Uma amiga maquiadora foi quem apresentou Jr. Denden, um músico do samba, verdadeiro mestre do violão de sete cordas. Foi química pura que os uniu, o talento das cordas e a voz marcante e de personalidade virou uma parceria de voz e violão.
Nada mais era necessário aonde surgiu a essencialidade.
“Eu já trabalhei com inúmeros artistas, mas ninguém com o talento dela. Quando a Fernanda coloca a voz numa canção, ela se apropria dessa música de forma única, intensa. É emocionante”, descreve Denden. Durante as gravações do EP, que será lançado ainda neste ano, e que a reportagem da Acontece acompanhou com exclusividade, Denden dedilha o violão, na maioria do tempo, de olhos fechados, como se estivesse em um transe. Ela canta e ele toca, dialogam num bailado musical perfeito. Trocam poucos olhares, nenhum sinal para ela entrar e eles vão tocando e cantando em pouco mais de uma hora com poucas interrupções, apenas para tomar uma água, respirar um ar para seguir adiante. Durante a execução da canção “Viajante” ambos terminam a apresentação exaustos dada as amplitudes vocais que Fernanda tem que atingir e ao frenético dedilhar das cordas que Denden impôs a ele mesmo no arranjo.
“Ela é uma intérprete muito potente, que canta uma MPB de concerto, para contemplação, para emocionar”, define a produtora Amanda Juliano que está organizando uma primeira apresentação da dupla em maio. Amanda, que é sócia de Marcos Lucatelli na Laje Produtora, explica como a dupla consegue dar uma nova roupagem a clássicos da MPB. “Tudo é moldado a partir do repertório da Fernanda. Ela nos traz as canções, muitas que nem eu, nem o Denden conhecíamos e, a partir daí, começa o processo dele em fazer os arranjos”, diz Amanda. “Eu pesquiso e estudo muito, trago as canções e muitas vezes referências de gravações da Elis, Chico, Quarteto em Cy, entre tantos, e pergunto: Denden, você ouviu? Ele responde que não. Eu começo a cantarolar e ele vai fazendo o arranjo, muitas vezes eu chamo a atenção para alguma palavra ou trecho forte de uma letra e ele segue. Se me perguntar como sai, eu digo que não tenho a menor ideia”, conta Fernanda Mascaro sobre o processo criativo de ambos que envolve enorme cumplicidade.
O show que está sendo ensaiado traz duas canções autorais de Fernanda, também compositora, que são “Testemunho” e “Desembestado”, além de clássicos como “Eu e a Brisa”, “Casa no Campo”, “Gente Humilde”, “Sabia” e “Paralelas”, entre tantas outras. O EP terá canções de Belchior, após Fernanda ter mergulhado na vida e obra do compositor. “Por tudo que passei, até chegar aqui, me identifico demais com Belchior”, completa Fernanda.
A cantora afirma que faz canção para um público que hoje está praticamente órfão e apreciava intérpretes como Ângela Maria, Cauby Peixoto, Maysa Gata Mansa, Celia, Elis. Embora a voz de Fernanda seja distinta da cantora gaúcha, ela tem uma característica marcante de Elis, ao interpretar cada canção. “Ela canta com a alma”, resume a produtora. “Eu peço para que o tempo não apague o que eu lembro e que o som das suas vozes não se perca com o vento”, como uma premunição da letra de “Testemunho”, Fernanda resgata todos esses clássicos cantores que agora não se perderão mais com o vento.
Comente